terça-feira, 13 de julho de 2010

A árvore do Jardim do Nada

PRÓLOGO – Mel e Joz

A informalidade precedeu o gesto. Joz precipitou-se ao encontro de Mel enquanto do outro lado da rua uma figura sinistra e incorrigivelmente maldosa sacava do coldre uma Magnum 45 e apontava contra nosso herói. O estampido foi ouvido a kilômetros e os gritos desesperados de Mel sangraram os ouvidos dos que passavam. O corpo inerte jazia no asfalto quente. Joz em sangue se esvaía. Aos gritos da multidão descontrolada mesclavam-se os gritos de Mel. Sirenes iam aumentando a cada segundo. A ajuda chegará a tempo? Pelo amor de Deus, não morra querido Joz. Maldita hora em que saímos de casa. E se tivéssemos nos apressado um segundo só, o tiro o teria acertado? Quem contra ele teria atentado, e por que? Enquanto se perguntava viu o sangue brotar entre os dentes de Joz. Está morrendo e nada posso fazer para salvar meu querido amado. Os filhos que não tivemos, as coisas que não fizemos. Os pensamentos pequeno burgueses afloravam. Apertou o corpo de Joz contra o seu e começou a orar. Uma oração indefectível, nada fazia sentido. Apenas Mel sabia o que dizia. Joz morreu no dia 12 de setembro de 2008.
Foi um enterro pobre. Serviu-se água, café e um refrigerante barato que imitava Coca Cola. Mel parecia catatônica, se é que eu sei o que isso realmente quer dizer. Alguém que a visse com aquele semblante em outra ocasião que não o velório de seu amado Joz, dificilmente diria se tratar de uma mulher com tantas cicatrizes. Não era bonita, mesmo assim podiam tomá-la por uma mulher linda. Tinha os traços retos, a boca grande, enorme, os olhos pretos, olheiras que a acompanhavam desde os doze anos de idade. Os cabelos eram negros, compridos e cacheados. Joz sempre buscava as mulheres com cabelos cacheados, deve ser por esse motivo que nos aproxima-mos, pensou. E mesmo eu não sendo uma mulher bonita, meus cabelos negros e cacheados devem tê-lo seduzido. O resto ficou por conta das nossas afinidades. Jamais imaginaria que aquele homem pudesse ter tantas coisas parecidas comigo e mesmo assim ser tão diferente. Nunca em meus 28 anos encontrei um homem como Joz. Talvéz se eu continuar viva não venha nunca a encontrar. Também não quero. Tornarme-ei viúva a partir de já e nunca mais, nem em meus mais profundos sonhos encontrarei outro homem. Nem que eu seja castigada a condenada a viver eternamente ao lado de um homem tão ou mais amável que meu querido Joz, mesmo assim não recuarei de minha posição. Prefiro morrer um milhão de vezes a trair esse meu juramento.
Oras caro leitor, que mulher, esposa ou amante diria outra coisa no velório de seu amado senão as coisas que acabaram de sair da boca de Mel? Que mulher diria outra coisa? Mel, Poena, Verusca, todas elas diriam as mesmas coisas, porém quantas manteriam suas palavras depois que o corpo de seus amados fossem finalmente enterrados? Quantas em um milhão? Quantas mulheres em um milhão de mulheres manteriam a palavra ao pé do ouvido de seu amado? Vinte. Isso mesmo senhoras e senhoras. Dentre um milhão de mulheres recém viúvas apenas vinte manteriam suas palavras. Mel era uma dessas vinte mulheres? Sim. E digo porque. Porque Mel morreu na mesma noite em que seu amado Joz foi enterrado.

Capítulo 1

Das coisas que deviam ser e não são mais

O verão de 1982 foi infernalmente quente. As pessoas corriam às lojas em busca de ventiladores. Aos mais pobres restava o corpo seminu. Os saques aos supermercados em busca de comida começaram depois que o presidente João Figueiredo anunciou o racionamento de leite e trigo. Hordas de pessoas famintas vagavam pelas ruas. Milhares de brasileiros morriam nas filas dos hospitais. O calor secara as últimas reservas de água. O racionamento de energia foi decretado. Havia eletricidade durante as segundas, quartas, sextas e domingos nos estados das regiões sul e sudeste. Nos outros dias o caos imperava. O exército nas ruas tentava conter os saques e as invasões. O prédio do INSS foi invadido na quinta e fizeram reféns mais de 40 pessoas. Paulo, Pedro, Joana, Marilda, Ermelinda, Ricardo, Juarez, Afonso, Laurindo, Paula, Tancredo, Penélope, Valquíria, Adriano, Alessandro, Blumenau, Jovino, Maluceli, Pedrosa e dezenas de outras pessoas eram reféns de pessoas famintas e desesperadas. Tentaram argumentar com o líder dos revoltosos. É aquele ali, tem certeza? Sim, tenho, olha a pose dele, tem tudo pra ser o líder de uma invasão como essa. Mas ele não tem pinta de quem consegue convencer esse bando todo a fazer alguma coisa. Pra invadir prédio público tem que ser líder, tem que ter iniciativa. No mínimo o cabra tem que ter pose de líder de alguma coisa. Vai lá, tenta argumentar com ele, explica que é perigoso pra eles e pra nós, que o exército não ta nem aí pra gente e não vai respeitar nada, vão entrar com tudo e mandando bala pra tudo que é lado. Não sei, se acha que ele vai me ouvir. Porra Blumenau, tu é o diretor dessa porra, autoridade máxima. Se você não for falar com o cara quem é que vai? Ta bom eu vou. Ô meu querido, com a sua licença, queria argumentar com vossa pessoa que o episódio aqui pode se agravar e terminar numa carnificina só. É de nosso conhecimento que o exército não negocia rendição em invasões a prédios públicos e quando chegam, chegam arrebentando. Com a sua licença senhoria, acho melhor a coisa acabar por aqui antes que todo mundo mor…. Blumenau não teve tempo de concluir seu raciocínio. O golpe o atingiu em cheio. Enquanto caía pensou em sua filha. Deve ser assim, em nossos momentos fatídicos, em quem mais devemos pensar? Se ainda somos apenas filhos pensamos em nossos pais? Não sei. Se somos pais, pensamos em nossos filhos? Blumenau pensou apenas em Mel. Que Deus a guarde de todo o mal e ilumine a sua vida. Amém. O corpo inerte e ensanguentado de Blumenau jazia no chão da repartição no momento da invasão. Um a um outros corpos se juntaram ao seu. Todos mortos. Os 40 reféns e os 37 invasores. Mel receberia a notícia do morte do pai na mesma noite. A sorte da pobre menina estava lançada. Que Deus a proteja de todo o mal.
Existia no quarto um grande guarda-roupas, antigo, do tempo em que os bichos falavam. Nele se escondia um monstro. Mell sabia de sua existência desde os tempos em que ainda engatinhava e por isso não se espantava mais com suas aparições. O monstro vinha e ficavam horas tagarelando, um querendo falar mais que o outro. As vezes o bicho se cansava e ia embora. Noutras vezes era a menina quem dormia enquanto ouvia como aquele horripilante monstro pusera um exército de mercenários para correr. Pode existir cena mais aterrorizante que essa caro leitor? Uma indefesa menininha largada nos braços de uma besta fera que a embala como se fosse um filhote? Quantos pequeninos mundo afora desejariam ser aquela criança? Dezenas, talvez centenas de milhares de pequeninos espalhados pelos quatro cantos do mundo. Mell era a criança mais afortunada de todo o planeta terra. Tinha seu próprio monstro do armário. Podia sair e passar dias fora de casa. Quando voltasse lá estava ele, pronto a ouvir as suas invencionices, as aventuras e as tantas coisas estranhas e novas que acabara de descobrir. “Hoje eu vi um macaco que cuspia nas pessoas”. Ah, esteve no zoológico é? “Sim, mamãe me levou depois da escola. Tinha esse macaco porcalhão, o leão que rugia e toda a terra tremia, as araras, o avestruz. Já viu como é estranho o avestruz? Acho que é o bicho mais estranho de todo o mundo.” Como podes saber minha pequenina, em que outros lugares do mundo você já esteve? “Eu sei sim, sei que é o bicho mais estranho do mundo. Eu o vi diversas vezes em um livro que mamãe guarda na estante. Tem a anta, o tamanduá, um monte de bichos que vivem na floresta e outros que vivem na selva. De todos esses bichos o mais estranho é o avestruz.” Então me diga porque. “Oras, já viu algum outro bicho ter tanta vergonha dele mesmo e esconder sua cara num buraco? Isso é verdade, nunca tinha pensado nisso. “Pois é, tem um monte de bicho muito mais feio que ele e nem por isso vive se escondendo. Tem o sapo com aquelas verrugas enormes e nojentas, o peixe mandraque, o tamanduá persa. Tem um monte de bichos muito mais feios que o avestruz que andam de cabeça erguida, sem medo de sua feiúra. Além do mais, ele nem é feio, até que é um bicho bonitinho. Tá certo que eu não sei exatamente o que ele é. Se tem penas e asas, deveria voar, mas não voa. Se tem aquele pescoço enorme como a girafa, ele deveria servir para alguma coisa, mas não sei pra que serve. Ele tem um monte de coisas que deviam servir pra alguma coisa mas não consigo imaginar pra que servem.” Talvez ele também não saiba e por isso mesmo vive se escondendo. As vezes temos essas coisas. Não nos entendemos e por isso temos medo de nos mostrar. Eu mesmo tenho isso as vezes. Olhe esses chifres na minha testa. Eles de nada me servem e mesmo assim aqui estão. Se eu fosse um bicho qualquer e vivesse no mato eles poderiam até ser úteis. Mas não me são. Sou um monstro horripilante, nenhum bicho teria coragem de me enfrentar, então esses chifres não me servem. Porém, se eles não existissem talvez esses mesmos bichos não me temessem. Ah, lá vem um monstro sem chifres, nem deve ser tão perigoso assim, diriam esses bichos. Como eu os tenho, devo assustar a bicharada com isso. Pra alguma coisa aquelas asas servem, isso eu lhe garanto, mas nem eu, você ou o pobre avestruz que você viu hoje poderá saber. Um dia talvez ele descubra e deixe de esconder sua cara num buraco.
Que maravilhosa cena caro leitor. Além de horripilante e feroz tal monstro era também um entendedor de coisas difíceis de serem entendidas. Que picardia, que agilidade com as palavras. Nem em um milhão de anos surgiria monstro mais amável e apaziguador como esse. Qual seu nome, não sabemos, apenas que era dócil e protetor. A pequenina Mell a besta fera protegia. Se surgissem ladrões ele os aniquilaria. Se na calada da noite lobos ferozes pela janela entrassem ele os devoraria. Nada no mundo da pequenina Mell se aproximaria, tal a astúcia e sagacidade do monstro que a protegia. Durante toda a madrugada de olhos abertos estaria, um a velar pelo sono da pobre menininha, o outro a cuidar da janela com primazia. Quando o sol no céu surgisse, em seu minúsculo guarda-roupa adentraria, a esperar a noite que em breve surgiria.
Quando o sol raiou na manhã seguinte Mell escorregou pelos lençóis e foi ter com o monstro que se escondia no guarda-roupas. “Ei, acorde, tenho que saber de uma coisa.” Não queres me deixar dormir menininha? Olhe que lhe devoro numa tacada só. “Não terias coragem, teria?” A pobre menininha tremia. Claro que não. Comeria minhas patas e minhas entranhas antes de arrancar um único fio de cabelo seu minha pequenina. Agora vá, diga logo o queres saber. “Onde ele está. No céu ou no inferno?”. Ouso dizer que não está nem em um e nem em outro. “No purgatório?”. Não, nem nesse ele está. “Então onde diabos está meu pai?”. Por que queres saber isso? Não lhe basta saber que ele está em paz? Já te disse mais de mil vezes, sempre ao amanhecer, a mesma hora, a mesma coisa. “Mas é que tenho medo. Se souber que ele no céu está, ficarei feliz. Se no inferno, sofrerei, mas saberei onde está. Se nem em um nem em outro, então não tenho paz. Me diga agora e juro nunca mais lhe perguntar.” Ele está bem, mas nem em um nem em outro. Agora me deixa dormir senão mudo de idéia e lhe arranco uma orelha. A criança foi ter então com a mãe.
Todos os dias acontecia a mesma coisa. Mell acordava e escorregava para perto do guarda-roupas, batia duas vezes na porta e esperava abrir. O monstro abria, respondia sempre a mesma coisa e voltava a dormir. Dois anos querido leitor, todos os dias, sempre a mesma pergunta e sempre a mesma resposta. Mell não cansava de o monstro inquirir. “Um dia ele vai falar, juro que vai”. Onde ele está, perguntava a pequenina. Furtivo o monstro respondia. Não dizia nada. Ou dizia mas a pequenina não entendia. Digo sim, dizia o monstro. “Não diz não”, retrucava a menininha. Digo, acabei de lhe dizer. “Não disse não”. E assim os dias passavam. “Um dia me dirá. Responda-me, um dia me dirá?” Direi, mas não hoje. Não tens como entender. Se te disser quererás a morte. Como não quero que morras, não te digo. Se um dia deixar de te gostar, te digo na hora. Assim saberás e morrerá.
Amanheceu. Um lindo dia despontava no horizonte. A menina levantou. Nessa manhã, contrariando aquilo que fizera durante anos, ignorou os chinelos e correu para o banheiro. O grito ecoou pela casa. Seria o cheiro da morte o que lhe impregnava as entranhas? O sangue escuro lhe escorria pelas pernas e ela desesperada não fazia outra coisa senão gritar mais desesperadamente ainda. Pobre menininha. Se pudéssemos congelar sua imagem ela seria a imagem mais triste e aterradora em todo o mundo. Grandes olhos negros desesperados. A mãe invadiu o banheiro e socorreu a pobre criança. “Calma meu amor, isso não é nada. Você já é uma mulherzinha, veja, olhe para você. Não tenha medo. Ao contrário, é bom que vá se acostumando. Isso, venha cá, deixe-me ajudá-la a se limpar. Não prefere um banho à se limpar com essa toalha? Minha menininha já é uma mulherzinha. Estou tão orgulhosa de você. Queria que seu pai estivesse aqui para te ver. Iria ficar tonto sem saber o que fazer. Contaria aos amigos e a todos da repartição. Agora tenha calma, isso, limpe com cuidado jogando a água por todos os cantos. Agora venha, deixe-me secá-la. Isso, dê-me um abraço. Você está tão grande, tão bonita. Olhe seus cabelos, são lindos. Sempre quis que meus cabelos fossem iguais aos seus, negros, cacheados. Isso você puxou de seu pai. Ele tinha cabelos tão lindos. Era um homem lindo não era? Venha cá, seque e se olhe no espelho. Vê esse rostinho? Sempre soube que você teria esse rosto, esses olhos. Deus me mostrou você muito antes de engravidar. Agora tenho a filha mais linda de todo o mundo. Quisera todas as mulheres tivessem filhas tão lindas como a minha. Meu amor, venha, me abrace.”
Era uma boa mãe. Viúva aos trinta e dois, que ironia. Naquele dia fora ao supermercado tentar garantir ao menos um litro de leite para a filha. Tão logo colocou os pés na rua sentiu que algo não terminaria bem. Santo Deus, o que será? Serei eu, meu marido ou minha filha? Não, minha filha não. Que me levem agora mas não a minha filha. Nada aconteceu. Meu marido. Deus, não deixe que o levem. Desceu a rua que levava ao supermercado como se fosse sua última caminhada. As portas do supermercado estavam cerradas e apenas uma pessoa podia entrar ou sair a cada apito da sirene dos seguranças. O tempo parecia ter parado. A quanto tempo estou nessa fila? Uma, duas horas? Não sei, apenas que o sol no horizonte já subiu e no céu está a pino. Que não demore pois quero chegar logo em casa. Nunca gostei de deixar minha menininha com outra que não fosse eu. É sua tia eu sei, mas não sou eu. As vezes acho que devia ser menos zelosa, deixar de me preocupar tanto. Mas não, não quero e não serei. Quem sabe o que passei para ter essa menininha sou eu e ninguém mais. Chegara a sua vez. Entrou e começou a caminhar em direção ao freezer onde finalmente iria encontrar o leite. Naquele momento que parecia parar, nada mais existia senão ela e o freezer a uma distância de mais ou menos cinco metros. E se me mandarem voltar, que é que eu farei? Não posso voltar sem esse leite, de maneira alguma posso voltar. Primeiro pego o leite. Depois posso correr e saltar a bancada das verduras. Mais um pouco e chego ao fim do corredor. Lá tem apenas um segurança. Direi que tenho uma faca e não hesitarei em usar. Sim, se me mandarem voltar farei exatamente isso. Deus é maior ela pensou quando agarrou aquele litro de leite como se fosse a última coisa que lhe importasse nessa vida. Consegui, ele é meu. Em pouco tempo estarei em casa e poderei preparar o seu alimento. Mas o que é isso, que são esses homens que caminham em minha direção? Quererão o que vim conseguir com tanto sacrifício? Ei, não ousem tirar de mim esse único litro de leite que consegui. Para trás. Um dos homens se aproximou e disse: Não queremos o seu leite. Venha conosco que seu marido jaz morto na repartição. – Meu marido. O que ele disse, meu marido? Blumenau, ele não disse o nome dele. Então não deve ser. Se fosse diria seu nome. Não chegam assim em um supermercado e vão dizendo essas coisas. Não. Se fosse esperariam eu chegar em casa. Diriam que querem falar comigo sobre meu marido e que devo ser forte. Lembrariam que eu tenho uma filha e diriam: Tens que ser forte por ela. Primeiro uma água com açúcar. Sente-se, está confortável? Precisamos lhe dizer. Houve uma invasão. Milhares estão revoltados com o presidente e desses alguns foram às ruas fazer estardalhaço. Invadiram o prédio do Governo. Quarenta homens ao todo. Dentre os reféns um homem se destacou. Seu nome era Blumenau. Dizem que argumentou com os invasores. Primeiro pediu a libertação de todos os reféns em troca da sua. Visto que não atendiam aos seus pedidos insistiu e os alertou sobre a invasão. O golpearam pelas costas. O sangue jorrou e entes de cair ele disse um nome: Mel. Sabes quem é? Sim, então é sua filha. Suspeitava disso. Dizem também que logo depois, um segundo antes de morrer disse baixinho outro nome: Antônia. É você não é? Lamento. Os outros reféns também estão mortos. Os invasores foram cruéis e antes de serem surpreendidos pelos soldados do exército mataram todos. Logo depois foram mortos pelos soldados. Que queimem no inferno todos eles. E que Deus receba seu marido com braços abertos. Antônia caiu. Quanto tempo ficou ali desmaiada? Não soube dizer. Apenas que pela última vez encontrou Blumenau. Abraçaram-se demoradamente. Ele lhe beijou o rosto e disse pela última vez: Amo-te. Amo nossa filha. Seja zelosa e carinhosa, mas não seja fraca. Filhos necessitam de pais fortes. Se precisar levantar a mão, faça. Faça doer mas não machuque. Agora que não estou mais entre vocês deixo a seu cargo essas responsabilidades. Conheça um homem bom, ame-o e seja feliz. Não pense que eu estarei a te recriminar. O farei se passar o resto de sua vida sozinha, isso sim. Beije nossa filha todos os dias e nunca canse em dizer o quanto a ama. Não pense que os filhos se incomodam. Não, não canse de lhe dizer isso. Mesmo que lhe pareça incomodar, insista. Somos filhos e sabemos o quão importante é. Deixe que pense que não sabe nada. As vezes nos querem alheios as coisas de suas vidas. Não se importe demais, mesmo que isso lhe custe um pedaço de seu coração. Esteja sempre disposta a lhe embalar, mas seja dura, seja enérgica sempre que a situação pedir. Beije-a sempre, é isso que lhe peço. Não hesite em lhe beijar. Quando nossos netos vierem ao mundo não os estrague como fizeram com nossa menininha. Seja avó, mas nunca seja mãe. Não os deixa saber que os ama tanto quanto amou nossa filha. Enfim, viva alegremente cada dia de sua vida. Vivemos apenas uma única vez. Amo-te. Beije-a. Tão logo ouviu esse último verso abriu seus olhos e com dificuldade conseguiu levantar. Senhora, espere, precisamos lhe falar sobre as coisas do enterro, bem sabes que esses preparativos levam tempo e exigem todos os cuidados. Aqui, assine esse documento na linha tracejada, agora esse, isso, só mais um instante e tudo estará encerrado. O enterro foi simples. Serviram água. Mell permaneceu o tempo todo ao lado da mãe. As vezes chorava e pedia para ir ter com o pai. Não podes meu anjo, fique aqui. Veja seu papai daqui. Ele está bem, está dormindo. Não se engana uma criança por muito tempo. O choro cada vez mais alto e incontido. Eu quero, eu quero, eu quero meu papai, me dá, me dá o meu papai. Para que me faça entender, digo que era como uma faca. Imagine-a entrando lentamente em sua garganta. A respiração fraca, os pulmões suplicando um tiquinho de ar que será sempre negado. A faca se enclina e desliza em diagonal, furando e rasgando ao mesmo tempo. O ar cessa. A faca é retirada. Os últimos segundos de aflição. O que são os últimos segundos? Era o choro de Mell.